sábado, 31 de janeiro de 2009

Álvaro de Campos
 
Aniversário
 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,  
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,  
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,   
De ser inteligente para entre a família,  
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.  
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.  
Quando vim a.olhar para a vida, perdera o sentido da vida. 
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,  
O que fui de coração e parentesco.  
O que fui de serões de meia-província,  
O que fui de amarem-me e eu ser menino,  
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...  
A que distância!...  
(Nem o acho... )  
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! 
O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,   
Pondo grelado nas paredes...  
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),  
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,   
É terem morrido todos,  
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...  
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!  
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,  
Por uma viagem metafísica e carnal,  
Com uma dualidade de eu para mim...  
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! 
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...  
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,  
O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,  
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,   
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos. . .  
   
Pára, meu coração!  
Não penses!  Deixa o pensar na cabeça!   
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!    
Hoje já não faço anos.  
Duro.  
Somam-se-me dias.  
Serei velho quando o for.  
Mais nada.  
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...